Para Flávio, Im memoriam
São muitos e generalizados os erros que se cometem na intervenção junto às pessoas que estão considerando mais seriamente dar um fim à sua própria vida. Sua origem repousa sempre na incapacidade de, efetivamente, penetrar mais profundamente os processos mentais (e sociais*) que levaram àquela situação. Antes de mais nada, a iminência do suicídio obriga a que revejamos todos os códigos baseados no sucesso ou alegria individuais e, principalmente, não os tentemos aplicar ao suicida em potencial. Tentar trazer um pré-suicida para um código mesquinho de valores pode até agravar o risco e apressar a decisão. Ele, certamente, já o terá tentado infinitas vezes, sempre de maneira infrutífera. Esforçar-se para, sob diversas maneiras, convencê-los de que a vida é boa e que a felicidade até existe, só agrava sua sensação de isolamento. Há que abrir algum caminho novo e segundo novos princípios.
"Coração de tísico.../Ó meu coração lírico!/Tua felicidade não pode ser como a dos demais /Terás que construir você mesmo a tua própria/Uma felicidade única/Que seja como o vestido em farrapos de uma menina pobre/---Feito por ela mesma."
("Bonheur Lyrique", tradução livre do original em francês, de M. Bandeira). O que têm em comum o tuberculoso e o pré-suicida? Todos vivem permanentemente em "tête-à-tete" "com uma senhora magra, séria,/Da maior distinção." ("Adeus Amor", M. Bandeira).
Que as taxas de suicídio se elevem, nos países do HNorte, no início da primavera, deveria ser suficiente para que nos convencêssemos de que os nossos códigos de expectativa de prazer e expressão vital invertem-se quando da aproximação da decisão de alguns por dar fim à própria vida. Para muitos desses, deve-se pensar que a espera da primavera é como uma espécie de última oportunidade (ou "Última Primavera", canção de E. Grieg, mas válido também para a "Derradeira Primavera" de Tom Jobim): "se, mais uma vez, tudo falhar; as pessoas à minha volta estiverem mais alegres, cheias de vitalidade e com o egoísmo típico e se eu não conseguir disso participar, o que me resta é morrer".
Alguns entenderão esse processo como uma prova do egoísmo dos suicidas e de sua necessidade de destruir a alegria dos demais. Outros, apoiados nessa maneira de ver, desenvolverão para com eles uma hostilidade, como um famoso cineasta em artigo de jornal há alguns anos. Condenam o suicida, como se aquele ato fosse "somente para atrapalhar". Os que assim pensam expressam apenas a sua própria mesquinhez. São os mesmos que nunca conseguiram "descer" de seus próprios códigos para tentar entender/acolher os que sofrem de algo para além de sua própria capacidade de compreensão. Melhor seria que simplesmente se calassem e deixassem o tema para outros.
Quando ouço jovens dizendo de si mesmos "Sou uma pessoa triste!", replico sempre "Não! V. é, em princípio, uma pessoa mais profunda!". Aquela sentença é suficiente para a conclusão. Muitos deles são apenas incapazes de participar do "coro dos contentes". Exiladas em meio a um mundo que as bombardeia com a comunicação: "V. tem que ser feliz! Se não for, aprenda a representar para v. mesma! Se não conseguir, finja diretamente! E se tudo isso der errado, desapareça!", essas pessoas começam até a afetar aquilo que pensam ser sua própria tristeza, enquanto outros afetam uma alegria patética, o que pode ser um indício de agravamento. Tudo pelo esforço de encontrar semelhantes e formar uma comunidade. Muitos ficarão completamente sozinhos, mais por suas virtudes do que por seus defeitos.
"O poeta é como o príncipe das alturas/Que busca a tempestade e ri da flecha no ar/Exilado em meio à corja impura/Suas asas de gigante impedem-no de andar" (O Albatroz, C. Baudelaire)
Do ponto de vista social, o quanto essa apologia da alegria é perigosa, atesta-o o paralelismo verificado em vários países desenvolvidos, entre altas taxas de suicídio, por um lado, e alta percepção de "felicidade" numa mesma sociedade. Na Dinamarca, por exemplo, há uma alta percepção das pessoas quanto a serem "felizes", mas também muito altas taxas de suicídio. Enquanto em Portugal observa-se exatamente o oposto. Em vez de discutir "percepção de felicidade", talvez precisemos começar a discutir a abertura das sociedades para acolher a dor e ouvir os dramas mais profundos de seus membros. Essa discussão um tanto tola quanto à felicidade, como se ela estivesse somente na nossa dependência, talvez esteja apenas aprofundando o abismo entre as pessoas e inibindo sua comunicação.
O estudo do suicídio revela tantos aparentes PARADOXOS! Um outro foi assinalado por Primo Levi, judeu sobrevivente de Auchwitz: por lá, os suicídios eram muito raros ou simplesmente não aconteciam. Ele mesmo, veio a se suicidar já depois do 80 anos e, até hoje, muitos consideram isso um absurdo. TODO PARADOXO É APARENTE. Revela apenas a estreiteza de nossas mentes e valores. Tudo isso para dizer: se v. quer abordar o problema do suicídio e do encontro de um sentido para vida, tem que estar preparado para buscar um novo código de valores, baseado na importância social da sua própria vida.
Por fim, tudo que a grande mídia e as grandes corporações visam é induzir nas pessoas uma alegria vazia**. Assim, elas se tornarão mais facilmente manipuláveis. Em relação à nossa cultura, sofrem de uma total incompreensão quando nos julgam padrão para o tipo de alegria que buscam. O grande perigo que os cariocas correm, hoje em dia, é o de tentar se tornar a caricatura que os estrangeiros estão dizendo que eles são. O ritmo que é considerado nossa marca, por exemplo, está muito longe da alegria vazia. Por isso, talvez não sirva para divulgação em grande mídia. A marcação no surdo é por demais profunda para os "ouvidos alegrinhos". Por isso abandonaram também os "Negro Spirituals" em função dos muito "alegres"e um tanto vazios "Gospell". Há uma perspectiva trágica na simples existência humana e ela não é acessível a todos. Alguns podem até estar no mundo como "Veranistas" (A.Tchecóv). Há alguma grandeza em não aceitar esse caminho...Mas nem todos conseguem abrir outros. A eles minha simpatia.
*O suicídio é o fenômeno demográfico mais previsível entre todos. Por isso, está longe de ser uma mera decisão individual. Antes de começar um ano, pode-se prever, com margem de erro mínima, o número de suecos, alemães, húngaros, japoneses, etc. que cometerão o sucídio. Temos fracassado demais nessa prevenção e isso repousa na incapacidade das sociedades de rever valores de maneira mais profunda. A intervenção técnica se dá apenas quando o conflito está configurado ou quando houve uma tentativa.
**Não faz muito tempo, a Globo tentou "emplacar" nas transmissões esportiva um boneco que sintetizava tudo isso: um certo "João Sorrisão". Chegamos a ver alguns jogadores tentando imitá-lo. Não viveu para contar muitas histórias. Há algo de indomável em nosso povo. Já no Faustão, a musiquinha é: "Sorria/Tire a tristeza dessa cara/...O bom da vida é ser feliz....".