domingo, 23 de maio de 2010

Como ficam os órfãos dos suicídas - Marie Claire

Choque Arianne encontrou o corpo da mãe logo após o tiro. Meses depois, ela desenvolveu um déficit de atenção


“Estava assistindo televisão e conversando ao telefone com uma amiga quando minha mãe passou por mim. Trocamos olhares, mas não nos falamos. Ela foi para o quarto e se trancou. Minutos depois, ouvi um barulho muito forte e um gemido. Chamei por ela, mas ninguém respondeu. Arrombei a porta e me deparei com minha mãe daquele jeito... caída na cama, com um tiro no peito... Num ato de desespero, tentei reanimá-la. Mas seus os olhos estavam entreabertos e as pupilas dilatadas... Eu não podia fazer mais nada. Fechei suas pálpebras e, em choque, fui procurar ajuda.” Arianne Menezes, 27 anos, é paulistana. Fisioterapeuta, ficou órfã de mãe aos 18.



“Eu tinha 13 anos e estava de férias em Botucatu, na casa do meu pai, quando acordei com os gritos da minha avó, que morava com ele. Levantei da cama e corri para ver o que tinha acontecido. Cheguei na sala e ela me impediu de avançar. Dei a volta pela cozinha e, ao chegar na varanda ... Dei de cara com o corpo do meu pai pendurado... Ele enrolou o cordão de capoeira no pescoço, na viga do telhado... e tirou os pés do chão. Se tivesse esticado as pernas teria sobrevivido... Desesperado, o abracei e tentei levantá-lo. Queria tirá-lo dali. Comecei a perguntar porque tinha feito aquilo comigo. Fiquei ao lado do corpo até a polícia chegar.” Daniel Aragão, 27, também é paulistano e professor de capoeira — a mesma profissão do seu pai.



“Tento lembrar da minha mãe viva, mas é inevitável. Quando penso nela, vem a imagem do corpo na cama”

— Arianne Menezes As reticências dos depoimentos acima não são um recurso de estilo. Denotam um silêncio incômodo, uma lembrança dolorosa. Mostram a dificuldade que os filhos de suicidas têm em falar sobre a morte dos seus pais. “Faz quase 15 anos e até hoje procuro palavras para dizer como meu pai morreu”, diz Daniel. Embora as imagens do suicídio sejam recorrentes nos pensamentos desses jovens, eles dificilmente falam sobre elas. Quando o fazem, evidenciam o desconforto na linguagem corporal: franzem o cenho, tamborilam os dedos e se emocionam. “Tento lembrar da minha mãe viva, mas é inevitável. Quando penso nela, vem a imagem do seu corpo na cama. Não queria que fosse assim”, diz Arianne.



“Quando uma pessoa comete suicídio, as respostas vão com ela”

— Nancy Rappaport O trauma do suicídio é tão profundo e difícil de ser elaborado que a psiquiatra infantil americana, Nancy Rappaport, 47 anos, cuja mãe se matou quando ela tinha 4, decidiu escrever um livro sobre o assunto e transformou o próprio luto em um estudo sobre o impacto desse tipo de morte na vida dos filhos de quem o comete — In her wake (O despertar dela), lançado no fim do ano passado nos Estados Unidos, sem previsão de chegada ao Brasil. Na obra, Nancy também faz uma investigação sobre a vida da mãe. “Cresci com muitas questões: entender quem ela era, saber o quanto me amava e por que fez aquilo. Quando uma pessoa comete suicídio, as repostas vão com ela”, diz. “No meu trabalho, percebi que filhos de suicidas tinham dúvidas parecidas, que acabavam sufocadas porque ninguém falava delas. Não quero que ninguém sinta o que senti e, por isso, resolvi escrever o livro.”



As primeiras reações

“Quem vai me levar na escola, quem vai fazer o jantar, quem vai cuidar de mim quando eu estiver doente?” Essas são as primeiras perguntas que vêm à cabeça de uma criança quando recebe a notícia de que seu pai ou mãe se matou. A maneira que lidam com a informação varia com a idade. “Elas só conseguem entender que a morte é um fim irreversível entre os 10 e 12 anos. Antes disso, não concretizam essa informação”, diz a psiquiatra Alexandrina Meleiros, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Um estudo do psicólogo americano especializado em órfãos de suicidas Albert Cain, mostra que crianças de até 6 anos reagem como qualquer outro órfão e só vão entender que seus pais tiraram a própria vida anos mais tarde.



É comum que crianças dos 7 anos em diante neguem o suicídio dos pais. Alguns chamam de mentiroso o parente que deu a notícia. Outros simplesmente não registram o que ouviram e criam suas próprias versões para a morte. “Em geral, essas crianças têm raiva de quem deu a notícia. É um mecanismo psíquico necessário para entender o que realmente aconteceu”, diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, do Instituto Quatro Estações em São Paulo, especializado em luto. Quando as crianças aceitam e entendem o suicídio, costumam se sentir culpadas e abandonadas, além de terem medo de que o genitor que sobreviveu possa se matar. Costumam desenvolver um terror noturno ou ter uma regressão de comportamento. “Perdi a confiança nas pessoas depois da morte do meu pai. Se ele, que me amava, se matou, porque outros não podem fazer a mesma coisa? Me apeguei à minha mãe — o maior medo da minha vida é perdê-la”, diz Daniel.



Quem se depara com o corpo do pai ou mãe mortos costuma ficar em choque e, na sequência, sentir pavor e raiva. Depois que fechou os olhos da mãe, Arianne desceu as escadas do sobrado onde morava. “Minha primeira reação foi procurar quem estava mais perto — fui chamar meu irmão, na época com 14 anos, que estava brincando na casa de um vizinho”, diz Arianne. “Quando dei a notícia, ele ficou atônito, começou a rodar em círculos, falando sozinho.



Perguntava para si mesmo, por que, como. Ligamos para o meu pai, que veio para casa. Ele chamou os bombeiros e, quando chegaram junto com a polícia, a casa ficou aberta. De repente começaram a chegar curiosos. Uma vizinha me disse que a decoração da minha casa era bonita. Aquilo me irritou tanto que parti para cima dela, para bater mesmo. Como podia dizer aquilo num momento como aqueles? Tiveram que me segurar. Chorei um pouco quando conversei com o delegado e expliquei como tinha encontrado o corpo dela. Minha ficha demorou para cair. Não me deixaram ver mais nada, não vi levarem ela embora. Naquela noite, fui para casa de uma amiga e não preguei o olho. Passei três noites fora e só consegui dormir de exaustão dois dias depois. Não chorei mais, nem no velório, parecia que eu estava anestesiada. Não queria ir ao enterro, mas meu pai pediu para eu me despedir dela. Na hora em que ela foi enterrada, me dei conta do que tinha acontecido. Desabei, chorei copiosamente e tive que sair no meio. Não consegui ver aquilo até o final.”



Daniel conta que, momentos após encontrar o corpo do pai, deu tantos chutes em uma mureta de casa, que a destruiu. “Me perguntava por que, por quê. Com raiva, não conseguia chorar. Achava que ele tinha sido covarde. Não me lembro bem como, os parentes e amigos começaram a chegar e me pediam calma. Todo mundo estava chorando mas eu não conseguia derramar uma lágrima. Furioso, eu gritava que ele não gostava mais de mim, que sabia exatamente o que tinha feito. Eu queria tirá-lo dali, como se sem a corda no pescoço ele pudesse voltar a vida. Pedia ajuda para desamarrá-lo, mas não podíamos mexer no corpo até a polícia chegar, me pediram para esperar. Na semana que se seguiu, continuei em Botucatu — meu pai mudou para lá depois que se separou da minha mãe, quando eu tinha dez anos, para dar aulas na Unesp e eu ia visitá-lo sempre. Passava todas as férias, os feriados, na casa dele... Acompanhei o velório, o enterro, mas estava com tanta raiva que não conseguia chorar. Demorei para entender, de fato, o que tinha acontecido e colocar as emoções para fora.”



Sentimento de culpa

A mãe da psiquiatra Nancy, que deu seu nome à filha, planejou o suicídio. Depois de dar à luz seis filhos, desenvolveu uma depressão. Morreu ao tomar dezenas de soníferos. “Tive o mesmo sonho durante anos. Eu era criança e entrava no quarto de mamãe. Ela estava na cama e só eu via o vidro de pílulas ao lado dela, mais ninguém conseguia. Depois, eu saía do quarto.” O tormento que o pesadelo trazia a Nancy estava ligado ao sentimento de culpa que ela carregava. “Só fui conversar sobre o suicídio depois de adulta. Na infância, lembro do meu pai dizer que ela ficou deprimida depois que nasci. Encarei a morte dela como minha responsabilidade. ‘Se eu não tivesse nascido’, pensava, ‘ela não teria se matado’. Sem os devidos esclarecimentos, muitas crianças agem da mesma forma. Fantasiam explicações e geralmente atribuem a culpa do suicídio para si.



Os pais de Daniel e Arianne não deixaram bilhetes nem deram sinais de que algo doloroso se passava com eles. A falta de explicações e de conversa também fez com que os jovens se culpassem pela morte deles. Daniel diz que só se libertou desse sentimento no final da adolescência. “Meu pai parecia muito feliz. Deu uma festa dois dias antes de morrer, parecia animado. Naquela noite, ele chegou tarde em casa. Eu estava dormindo, mas levantei para falar com ele, que estava comendo e assistindo televisão. Quando me viu, me puxou para perto dele e abraçou. Me deu um beijo, me chamou de doutor Daniel — como gostava — e mandou voltar para cama. Passei a adolescência me penitenciando por ter acatado. Achava que se tivesse passado a noite com ele, nada teria acontecido. Me livrei desse sentimento aos 16 anos, quando ouvi uma fita cassete com uma gravação dele tocando viola e dizendo coisas bonitas. Naquele momento, me dei conta de que meu pai tinha tirado a própria vida por vontade e que eu não podia ter feito nada. Chorei muito. A partir daí, passei a chorar quase todas as vezes em que falo dele.”



Arianne também se perguntava se poderia, de alguma forma, ter desagradado a mãe, o que poderia ter feito para evitar a tragédia. “Foi um choque para nossa família. Ela e meu pai estavam planejando uma segunda lua de mel. Naquele dia, estava meio abatida, chorou. Quando percebi que ela estava meio para baixo, perguntei se estava tudo bem. Como ela respondeu que sim, não dei muita atenção”, diz. “Mas durante muito tempo me questionei se não deveria ter perguntado mais, ter ficado do lado dela naquela hora. Me perguntava qual era minha participação na tragédia e por que ela tinha feito aquilo comigo se amava tanto os filhos como dizia. Depois, me dei conta de que nunca teria a resposta.”



A vida sem eles

“Passei a me sentir solitário nos anos que se seguiram à morte do meu pai. Ficava muito quieto, fechado. A sensação que eu tinha era de ter me trancado no meu quarto e que ali era o meu mundo. Continuei indo à escola, fazendo minhas atividades. Mas quando chegava a hora da saída, pensava que ele não iria mais me buscar como já tinha feito outras vezes, quando vinha a São Paulo. Parecia que tudo tinha ficado mais difícil — lembrava dele nos momentos mais improváveis. Não tinha vontade de ir às festas do colégio, da família. Chegava a ficar uma semana sem falar com ninguém. Até hoje, mesmo nos momentos em que fico feliz, sinto uma tristeza enorme. Porque quando acontece uma coisa muito boa, eu queria que ele estivesse vivo para dividir a alegria comigo”, diz Daniel.



Para verificar como reagem os filhos de suicidas, um grupo de médicos americanos liderado pelo psiquiatra infantil David Brent comparou o comportamento deles com o de outras crianças e adolescentes que perderam os pais repentinamente, em um acidente ou de forma natural. Enquanto as taxas de depressão entre os membros dos dois últimos grupos se estabilizaram cerca de um ano e meio depois da perda dos pais, a dos filhos de suicidas continuou a subir. Para a psiquiatra Nancy, existem duas explicações para esse fenômeno. A primeira é que a depressão pode surgir por causa do sentimento de culpa e de abandono. A segunda pode ser genética. Quase 50% das pessoas que tentam se matar têm algum transtorno de humor ou de personalidade.



Crianças e adolescentes que sofrem esse tipo de trauma podem apresentar dificuldades de aprendizado, além dos transtornos emocionais, segundo a psiquiatra Alexandrina. Isso porque, no momento de tensão ou perigo, o cérebro recebe altas doses de cortisol, como parte do processo da reação de defesa. Essa superdosagem do hormônio pode lesionar o hipotálamo e gerar sequelas. “Quanto mais cedo essas crianças fizerem tratamento psicológico e psiquiátrico, maior é chance de o cérebro se reorganizar e evitar prejuízos futuros.”



Arianne diz que se sentiu forte nos meses que se seguiram à morte da mãe, até perceber que não conseguia mais manter-se concentrada. Ao sentir que o trauma havia gerado uma mudança no seu comportamento, foi procurar ajuda. “Depois do enterro, achei que tinha de ser a forte da família porque meu pai e meu irmão estavam muito abalados. Assumi papéis dela, mandava meu irmão escovar os dentes, ir para cama. Evitava pensar no que tinha acontecido. Sempre fui brincalhona e depois que ela morreu, vivi uma espécie de alegria exagerada. Via graça e brincava com tudo. Tanto que nenhum dos amigos da faculdade desconfiou do que tinha acontecido. Passei meses naquele estado de excitação até perceber que estava com um déficit de concentração. Esquecia os trabalhos e o conteúdo das aulas. Não absorvia nada, nunca terminava uma tarefa. Seis meses depois da morte da minha mãe, fui fazer terapia. Foi só aí que comecei a falar do assunto com alguém. Ajudou demais, voltei a ter centro”, diz Arianne. “Tem dias que eu não acordo bem — e geralmente é porque estou com saudades dela. Nos Natais, fico triste, uns minutos em silêncio. Mas só. Não fiquei com raiva dela. Fiquei com raiva de Deus. Se Ele realmente existia, por que tinha feito aquilo comigo? Demorei sete anos para aceitar que tinha raiva. Depois de trabalhar esse sentimento, me dei conta de que não conseguiria viver sem acreditar em nada. Sem a crença em algo maior, minha vida perdia o sentido. Sonhei poucas vezes com minha mãe. Geralmente, ela me abraça e eu sinto a presença física mesmo. Não lembro de diálogos. Os sonhos acontecem quando estou com algum problema. Ela vem me dar conforto mesmo, sinto o toque físico dela. Inclusive, é disso que eu sinto mais falta. Tem coisas que a gente só conversa com mãe. Minha família convencional acabou. Vejo pouco meu pai e meu irmão, o que me incomoda. Parece meio careta, mas sinto falta de ter esse núcleo. Como o sofrimento foi solitário, acabamos nos tornando meio egoístas.”



Sublimação da dor

Tanto a psiquiatra Nancy como Daniel partiram para a pesquisa para descobrir quem eram seus pais. Nancy escreveu o livro. “Eu sabia pouco sobre minha mãe. Não sabia sequer qual era a cor predileta dela. Ao pesquisar com parentes, amigos e jornais da época, descobri que ela era uma líder comunitária com aspirações políticas. Tinha depressão e o fato de ter tirado a vida não significa que não me amava. Graças a esse trabalho pude ter, de alguma forma, um longo contato com ela”, diz Nancy.



“Fazer algo produtivo com a tragédia é o que nós chamamos de sublimação da dor”

— Alexandrina MeleirosDaniel, que prepara um documentário, descobriu que o pai foi um capoeirista importante, responsável por levar o esporte para o exterior. “Aos 18 anos, comecei a pesquisar. Perguntava o que ele fazia e do que gostava para amigos e parentes; pedia para me contarem histórias. Descobri que ele também era músico”, diz. “Comecei a praticar capoeira para dar continuidade ao que ele fazia.” Daniel foi divulgar o esporte na Ásia. “Fazer algo produtivo com uma tragédia é a sublimação da dor”, diz Alexandrina.



Arianne conheceu bem a mãe. “Ela era pedagoga, parou de trabalhar para cuidar da família. Era linda e super vaidosa. Fico satisfeita com os valores que ela passou. Poderia ter ficado depressiva e rancorosa com o que aconteceu, mas tenho uma profissão, me sustento e, principalmente, busco a felicidade. Penso na minha mãe todos os dias. É claro que sinto uma saudade imensa. Mas acabou apenas para ela. Eu continuo aqui.”

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